quarta-feira, 21 de março de 2012

Entrevista de Paulo Borges ao filósofo romeno Ciprian Valcan sobre budismo, filosofia, Cioran, Oriente e Ocidente

1. Em que medida um melhor conhecimento da filosofia oriental contribui para a transformação da reflexão filosófica da tradição ocidental? No seu caso, como é que o budismo influenciou o estilo de filosofia que pratica?

Conhecer as filosofias orientais – muito diversas entre si – é indispensável para conhecer melhor a própria filosofia ocidental. Por um lado, porque algumas filosofias orientais, como a persa e a indiana, são fruto da mesma matriz linguística e cultural, a indo-europeia, com categorias muito semelhantes às do pensamento ocidental, procedente da submatriz grega do pensamento indoeuropeu. Por outro, porque outras filosofias orientais, como a chinesa e a japonesa, radicam numa matriz linguística e cultural muito distinta, configurando uma heterotopia (Michel Foucault), uma alteridade apenas por contraste com a qual se podem plenamente esclarecer as fundamentais opções que configuraram o destino da filosofia europeia-ocidental e a civilização dela surgida. Não é possível compreender a Europa e a filosofia ocidental sem as confrontar com o pensamento chinês, como hoje mostra François Jullien. O mesmo se pode dizer, embora de forma mais atenuada, da filosofia persa, indiana e tibetana (a qual, embora procedente de outra matriz linguística, incorporou muitas das categorias indianas). Se bem que ligadas a uma matriz comum, estas filosofias exploraram possibilidades muito diversas daquelas que foram sendo predominantemente privilegiadas pelo pensamento ocidental. Pese o risco de generalizações sempre falaciosas, pode dizer-se que as filosofias orientais privilegiam a experiência directa e pré-conceptual da vida e/ou do fundo indeterminado dos fenómenos, enquanto a filosofia ocidental, sobretudo desde Platão e Aristóteles, optou pela determinação conceptual do mundo com fins político-científicos. Outra grande diferença é o antropocentrismo do pensamento ocidental pós-socrático - raiz da actual crise ecológica e da devastação da Terra e dos seres vivos - perante a tendencial empatia cósmica do pensamento oriental com todas as formas de vida, vistas como iguais no seu fundo comum. Seja como for, as tradições são sempre muito mais interligadas do que as histórias da filosofia nos levam a crer. Não há culturas, mas sim entre-culturas.

Conhecer o pensamento oriental é decisivo para que o Ocidente compreenda as outras possibilidades que as suas opções sacrificaram, mas que nele permanecem latentes, por serem inerentes ao homem e ao espírito. Isto já é uma profunda transformação e possibilita imprevistas metamorfoses do pensar europeu-ocidental. Isto exige todavia o expatriamento da nossa situação cultural mais imediata, que nos permita vê-la de fora, panoramicamente. Isto exige um pensamento nómada, que não se ancore numa dada matriz linguístico-cultural, mas viva em constante viagem no espaço entre todas elas. É esse o projecto da revista que dirijo, Cultura ENTRE Culturas.

Encontrei o budismo ao terminar a licenciatura em Filosofia, em 1981, e reconheci nele o que já era e vivia antes de o saber. Senti o mesmo em relação a alguns pensadores portugueses contemporâneos, que descobri na mesma altura. Essas influências, o budismo, sobretudo Nagarjuna, Longchenpa, Hui Neng, Linji, Dogen, Chögyam Trungpa, Thich Nhat Hanh, o tantrismo e o Dzogchen tibetanos, os mestres com quem estudo pessoalmente, a prática quotidiana da meditação, pensadores e poetas portugueses como Antero de Quental, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, José Marinho, Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva, mas também Eckhart, Rumi, Nietzsche, Cioran e poetas e místicos de todas as tradições, têm-me ajudado a esclarecer as mais gratas experiências que remontam à infância: o sentimento agudo da estranheza de existir e haver realidade, vivido até à iminência da exaustão e loucura; a comunhão disso com um amigo de jogos de rua, cerca dos 8 anos de idade; a iniciação adolescente à consciência sem sujeito nem objecto e ao sentimento de ser todo o mundo-ninguém por via da música, da dança e da experiência erótico-sexual e amorosa; a experiência do espaço aberto ao sair da Universidade de Lisboa, no fim das aulas de Filosofia, com a mente livre de todo o artifício conceptual; a mesma liberdade nas longas caminhadas por montanhas e florestas, pelas colinas de Lisboa e ao entardecer nos miradouros sobre o Tejo; a contemplação do oceano no finisterra português e a saudade de um não sei quê; o brilho das coisas nos muros caiados de branco; a vida sem quem nem quê, sem porquê nem para quê, livre e infinita. De tudo isso vem e a tudo isso regressa o meu pensar, mais directamente expresso em A cada instante estamos a tempo de nunca haver nascido e Da saudade como via de libertação (2008), além de na ficção Línguas de Fogo (2006).

2. Como se produziu a sua conversão ao budismo? Foi uma escolha racional ou um puro acto de fé?

Não me sinto convertido ao “budismo”. Na verdade não me interessa tanto o budismo histórico e institucional, mas antes a experiência de Buda, o Despertar da mente-coração na sua natureza primordial, livre de condicionamentos conceptuais-emocionais e das decorrentes convenções sócio-culturais. É isso que encontro nos mestres e em muitos homens exemplares de todas as tradições espirituais, bem como na agnóstica e ateia. Deus procede de uma raiz indo-europeia que significa “o que brilha” e a experiência dessa luz que há na consciência, para além de budologias e teologias, de religiões e filosofias, é a mesma em todo o homem, religioso, agnóstico ou ateu.

Dei por mim a seguir a via do Buda por experiência, caminho do meio para além da razão e da fé. Pessoalmente aprecio nela várias qualidades: o espírito iconoclasta, patente no “Se vires o Buda, mata-o!” de Linji, pois o Despertar não é alguém ou algo exterior; ser experimental e não dogmática, pesem os desvios de muitos budistas; ter uma ética global que não exclui nenhum ser senciente, como os animais; assumir-se como mero meio a ultrapassar, pois o que importa não é ser budista e sim Buda; e, sobretudo, a qualidade e inspiração dos mestres vivos que a ensinam. Contudo o meu interesse pelo budismo estende-se a todas as religiões e vias espirituais, formas diferentes de conduzir pessoas com distintas tendências, capacidades e condicionamentos histórico-culturais a um mesmo objectivo: a plena descoberta de quem desde sempre são.

3. Como veio a conhecer a obra de Cioran e que significado teve para si o contacto com esta obra?

Há algo em mim tão afim que não poderia deixar de a encontrar. É como se Cioran expressasse toda a revolta, desespero e pulsão niilista da minha adolescência e juventude, mas hoje não é tanto isso que na sua obra me interessa, lamentando que fique demasiado refém disso e de uma dolorosa ausência de amor e compaixão. Interessa-me nele o iconoclasmo místico e, sobretudo, as aberturas a uma transfiguração redentora. Cioran poderia ter escrito apenas o seguinte trecho de Sur les Cimes du Désespoir, no qual me reconheço inteiramente: “Gostaria de perder a razão com uma única condição: ter a certeza de me tornar um louco alegre e jovial, sem problemas nem obsessões, folgazão de manhã à noite. Se bem que deseje ardentemente êxtases luminosos, não os quereria no entanto, pois são sempre seguidos de depressões. Quereria, em contrapartida, que um banho de luz de mim brotasse para transfigurar o universo – um banho que, longe da tensão do êxtase, conservaria a calma de uma eternidade luminosa. Teria a ligeireza da graça e o calor de um sorriso. Quereria que o mundo inteiro flutuasse neste sonho de claridade, neste encanto de transparência e imaterialidade. Que não haja mais obstáculo nem matéria, forma ou confins. E que, neste paraíso, eu morra de luz”.

Cioran inspira a mais ousada e radical aventura: transcender todos os limites do pensamento, da vida e da existência e sobreviver para o dizer ou gritar, com uma mestria literária que enobrece as ruínas do mundo. Inspira-me também nele o que encontro em portugueses como Pascoaes e Pessoa: na periferia da cultura europeia dominante, agudamente conscientes do fim de ciclo da sua civilização, serem movidos pelo ímpeto de libertação dos ídolos dessa mesma cultura e civilização, sem se deterem no limite do humano, numa titânica hybris de superação de tudo, do sujeito e de si mesma, numa nostalgia ou saudade violenta do incondicionado, irredutível à constituição do sujeito no mundo e fundo sem fundo de toda a experiência. Fascina-me o modo como em Cioran o génio literário serve um obsessivo e minucioso ajuste de contas com todas as ficções da consciência, da história e da cultura, escalpelizadas e reduzidas a cinzas pelo cirúrgico e cáustico bisturi do aforismo e do pensamento incendiado na veemência da insónia, da febre e da blasfémia, mas também do entusiasmo extático e transfigurador. E também a assumida inspiração no primitivismo dos camponeses das montanhas romenas e na pulsão herética da sua cultura popular, semelhante ao que em Portugal acontece com Teixeira de Pascoaes ou Agostinho da Silva. Cioran mostra aliás conhecer as fundas afinidades entre a cultura romena e a portuguesa. Num dos seus Entretiens assume a “nostalgia sem limites”, inerente à fugacidade da experiência temporal do absoluto, como fundadora da sua visão do mundo e acrescenta: “Este sentimento liga-se em parte às minhas origens romenas. Ele impregna ali toda a poesia popular. É uma dilaceração indefinível que se diz em romeno dor, próxima da Sehnsucht dos Alemães, mas sobretudo da Saudade dos Portugueses”.

Fiz uma conferência sobre Cioran e Fernando Pessoa na Universidade de Gröningen, na Holanda, em 2009, que publiquei na revista Arca graças a Ciprian Valcan e que incluí no meu último livro sobre Pessoa: O Teatro da Vacuidade ou a impossibilidade de ser eu (2011).

4. Qual a recepção actual da obra de Cioran em Portugal?

Nos últimos anos tem havido um aumento de traduções que estão a ser recebidas com muito interesse, mas creio que até agora só há um estudo publicado: João Maurício Barreiros Brás, O pensamento insuportável de Cioran. Um itinerário do desespero à lucidez (2006).

5. Qual o papel da filosofia na nossa época? Crê que a filosofia chegou ao fim do seu caminho ou tem hipóteses de sobreviver?

Tudo o que tem início tem fim e a filosofia, se a identificarmos com a modalidade logocêntrica e conceptual surgida na Grécia e sobretudo com a sua vertente académica e institucional, está a esgotar-se, pelo afastamento da vida e de outras possibilidades do espírito. A filosofia deixou em geral de ser um modo de vida integral, como nas escolas filosóficas gregas (como recordou Pierre Hadot) e indianas, para se tornar uma actividade meramente intelectual, com uma linguagem técnica hiper-especializada em questões estéreis, que nada dizem às fundamentais aspirações humanas. Essa filosofia traiu a própria vocação, enquanto amor da sabedoria, do saber/sabor da essência da vida, e nesse sentido o seu triunfo é a sua morte.

Por outro lado, se considerarmos filosofia as múltiplas formas do pensamento planetário que visam a sabedoria - um saber que nos converte naquilo que sabemos e promove uma vida mais plena e solidária - , então essa filosofia é perene enquanto conatural ao exercício consciente do viver e sempre se renova em função dos novos lances do jogo do mundo. No que respeita à filosofia ocidental, creio que o seu renascimento depende do diálogo com esses outros paradigmas não-ocidentais e sobretudo do reencontro com a vida e o infinito que nela se abre. Necessitamos de um novo início: repensar tudo na experiência mais imediata, a do indeterminado pré-conceptual. Não a partir de Deus, do homem, do mundo ou de qualquer outro pressuposto, não “a partir de”, mas nisso que a cada instante antes de se pensar e se abre entre cada pensamento, palavra e fenómeno. Isso implica morte e renascimento contínuos: viver sem apoios.

6. A prática do aforismo ou do fragmento poderia contribuir para dar um novo alento à filosofia ocidental, mais aberto e menos dogmático?

A filosofia nasce do espanto balbuciante não só perante o haver algo, mas também perante o nada desse haver. Só aí pode re-nascer a cada instante, incinerando todos os conceitos, métodos e sistemas. O aforismo e o fragmento são o mais eloquente dizer desse gritante silêncio que há no aparecer das coisas. Neles a filosofia regressa à sua matriz místico-poética, anterior à violência do conceito que a extirpou do espanto original, como diz Maria Zambrano.

7. Crê que se pode falar de um declínio geral da civilização ocidental ou olha para o futuro com esperança? A civilização oriental poderia oferecer um modelo para este Ocidente que padece de niilismo?

Procuro viver e pensar para além do medo e da esperança. No plano colectivo, feito desse medo e esperança, creio assistirmos ao fim do que se convencionou chamar Ocidente e Oriente, que progressivamente se fundem numa nova civilização global que exteriormente tem um cunho ocidental - económico e tecnológico - , mas que arrisca uma vida curta e o iminente colapso social e ecológico se interiormente e ao nível da liderança não reencontrar a espiritualidade e a ética que presidiram ao melhor do Ocidente e do Oriente tradicionais, mas agora em termos laicos e trans-religiosos. Foi o que anunciou Fernando Pessoa, ao interpretar o maior mito profético da cultura portuguesa, o do Quinto Império, como uma era do espírito e da cultura que deverá fundir e elevar a uma superior síntese civilizacional a essência de Grécia, Roma, Cristandade e Europa, incorporando ainda o melhor de todas as culturas e civilizações mundiais num amplo universalismo. Antevejo essa superior síntese como uma nova aliança com a Terra e todos os seres vivos, fundada numa consciência holística e numa ética cósmica.

O niilismo ocidental resulta da incapacidade de se suportar habitar po-eticamente esse “vazio” aberto pela “morte de Deus” proclamada pelo “louco” nietzschiano: “Para onde vamos nós próprios? […] Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio?”. Nesse aspecto, a espiritualidade oriental, mas também a de Plotino, Eckhart ou a heteronimia de Pessoa, podem ajudar-nos a descobrir nesse abismo o nosso próprio rosto e o de todas as coisas: o infinito exuberante de todos os possíveis, Todo o Mundo-Ninguém.

- Entrevista publicada em "Orizont" (Revista da União dos Escritores da Roménia), nr. 2 (1553), Ano XXIV, nova série, 28 de Fevereiro de 2012. Traduzida para romeno por Maria João Coutinho e Simion Cristea.

http://www.revistaorizont.ro/

2 comentários:

Rafael Dias disse...

Paulo Borges, obrigado por partilhar connosco o seu pensamento e modo de viver.

Paulo Borges disse...

Grato eu! Abraço